Não, você não é independente e nada do que você faz é resultado unicamente do seu esforço. Vivemos em uma sociedade complexa, onde todos os feitos são o resultado da ação acumulada de dezenas, centenas ou milhares de indivíduos.
Dervixe já mostrou na edição anterior de Fagulha, como no mundo atual, o privilégio que certos grupos têm facilita com que eles obtenham o sucesso naquilo que buscam. Mas a verdade é que, mesmo que todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades e recursos, aquilo que um indivíduo alcança nunca é mérito só seu.
Talvez aquele cirurgião, aquela advogada famosa ou as lideranças das grandes corporações achem que chegaram lá através do seu próprio esforço e mérito. Mas o fato é que essas pessoas nada teriam conseguido sem o apoio da sua família, sua comunidade, seus antepassados, e, podemos dizer, de toda a humanidade. Esse médico ou a advogada dificilmente teriam conseguido se dedicar a centenas de horas de estudo necessários para suas formações sem, por exemplo, uma família que pagasse pelas suas despesas, sem professores e professoras qualificadas para lhes apontar o caminho, sem colegas para apoiar e ajudar a esclarecer as suas dúvidas. Não vamos esquecer: e alguém para produzir e preparar sua comida, lavar a sua roupa, limpar a sala de aula e garantir que tudo na sua vida corra de forma que ela possa continuar seus estudos. Ah, e é claro, nada disso seria possível sem as milhões de pessoas que pagam impostos para manter as universidades públicas, as ruas, estradas e transporte público que permitem o acesso a elas.
Também muito pouco conseguiríamos fazer sem as ferramentas que temos à nossa disposição, sem o trabalho daquelas pessoas que se dedicam a produzí-las. O que faria a advogada sem papel, sem caneta, sem computadores, sem uma mesa ou uma cadeira? Sem suas roupas e livros? O que faria o cirurgião sem bisturi, sem a equipe de enfermagem, sem uma mesa cirúrgica, sem agulha, linha?
Não faz nenhum sentido pensarmos que foi o mérito pessoal que permitiu que uma pessoa se tornasse cirurgiã e não lixeira quando sabemos muito bem que não existiria a medicina moderna sem as centenas de pessoas que recolhem o lixo e limpam a sujeira. Não existiriam grandes empresas sem a miséria que faz com que exista gente disposta a aceitar empregos sub-humanos de forma a não morrer de fome.
Nem mesmo nossas ideias são inteiramente nossas, elas são fruto daquilo que ouvimos, lemos e percebemos no ambiente ao nosso redor*. Alguém que cresceu no meio de uma família instruída, cercada de livros, teve acesso a boas escolas, vai ter mais recursos intelectuais à sua disposição do que quem tinha pai e mãe ausentes e cresceu em um ambiente desprovido de estímulos. Faz sentido dizer que a primeira chegou à presidência de uma empresa por seu próprio mérito? Faz sentido dizer que é culpa da segunda criança ela ter ido acabar no crime? Ambas são fruto daquilo que a sociedade ofereceu a elas.
No fim das contas, nossas ações dependem muito mais do contexto em que estamos – a cultura na qual estamos inseridos, a situação familiar, a conjuntura política, as informações às quais fomos expostas, as ferramentas e estruturas que nossa sociedade nos fornece – do que de qualquer esforço ou mérito individual. Esse próprio texto não é mérito de seu autor, pois não existiria sem a influência dos textos que leu, dos filmes que assistiu, das conversas (e discussões) que teve com outras pessoas. Tudo o que fazemos e pensamos é fruto de uma construção coletiva, que só existe graças às ações e ideias de bilhões de pessoas através de centenas de milhares de anos. Todas as pessoas que colaboraram com a construção dessa complexa linguagem que usamos – que permite a expressão de ideias elaboradas e pensamentos complexos –, toda a cultura, ideais, filosofias e ideologias que nos foram passadas, toda a história de nossa família e civilização – tudo isso tem um papel, e nossas ações e ideias são apenas o resultado dessa complexa equação†.
Vamos ser honestos, a meritocracia não faz nenhum sentido. Somos todos indivíduos diferentes, cada qual com seus defeitos e virtudes. Alguém pode ser melhor em cálculos complexos, estando mais apta para ser uma engenheira, por exemplo, mas não possui a humildade e a força física de quem constrói as paredes que projeta. Outra pessoa pode ter a frieza e destreza manual necessárias para ser neurocirurgiã, mas não tem a empatia e a sensibilidade fundamentais para exercer a enfermagem. Ninguém é melhor do que ninguém, ninguém merece mais do que ninguém. Como podemos medir quem é melhor que quem, quem merece mais que quem, sendo todas as pessoas tão diferentes, com histórias tão diversas, com oportunidades tão desiguais? É preciso muita arrogância para se achar capaz de julgar quem merece o quê.
O capitalismo precisa que todas as pessoas estejam constantemente competindo entre si para assim conseguir se justificar, legitimar e continuar existindo. O fato de algumas terem muito serve para iludir as demais de que, com o devido esforço e sacrifício, elas podem chegar lá. Mas o capitalismo é um golpe de pirâmide, só alguns podem chegar no topo – para cada médico, para cada juíza, para cada presidenta, são milhares de pessoas executando os trabalhos braçais necessários para as manter no topo.
A meritocracia é a vara com uma cenoura amarrada na ponta que faz o coelho continuar correndo. Nós somos os coelhos e coelhas. Vamos parar de prestar atenção na cenoura e vamos nos concentrar em ajudarmos umas às outras. Somente através da cooperação – quando cada pessoa colabora de acordo com as suas capacidades e recebe de acordo com as suas necessidades – poderemos construir uma alternativa duradoura ao mata-mata do capitalismo.
Notas:
* Por isso a ideia de “propriedade intelectual” é tão ridícula!
† De novo!